Éramos três

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Eu estava com 28 anos, Dulcineia, minha irmã com 27, Tebaldo tinha seus 25. Éramos três, e em um passado distante, éramos muito unidos. Ainda lembro que na categoria de primogênito, eu tinha o trabalho maior de resguardar a segurança de meus irmãos na escola.

Hoje, vejo que o tempo é cíclico, as mudanças são continuas e imperceptíveis, cada escolha feita, a cada passo dado, a cada centavo acumulado, tudo contribuiu para um distanciamento inconsciente. Cada um com sua pequena vida, em seu pequeno mundo paralelo à realidade dos demais.

Tenho guardado em minha mente muitas lembranças, de brigas, reconciliações, abraços e lagrimas. Como um negativo, meio apagado, de uma velha câmera Holga. Naquele estranho dia, percebi como era gostosa a infância, e como era amarga a distância e tudo mais.

Assim, certo dia meu telefone tocou, era minha mãe, falava como quem está em duas tarefas ao mesmo tempo:

– Ernesto estou fazendo um jantar e seus irmão estão aqui, venha para casa.

Com certa relutância eu aceitei o convite, tinha sido um dia cansativo, afinal, o cotidiano de um trabalhador de classe média é mecânico e monótono. Queria ficar no sofá e colocar um vinil empoeirado dos Smiths, e mais nada. No entanto, o convite foi aceito. Anita, minha companheira me acompanhou.

Logo na chegada observei Ophelia, um bebê branco de cabelos encaracolados, aos prantos. Após uma curta procura, minha irmã percebeu a falta da mamadeira, ela havia deixado em sua casa.

– Ernesto a Ophelia ta numa choradeira, tu podia levar sua irmã para buscar a mamadeira – Disse minha mãe.

– Claro… Tebaldo, você podia ir também, vamos passar a conversa a limpo, e jogar alguma nicotina no sangue – Respondi

– Pode ser, não estou fazendo nada mesmo, e o frango ainda vai demorar – Foi a resposta do caçula.

No caminho pegamos o carro mais próximo da garagem, ou seja, o meu, e fomos em busca da mamadeira perdida. Ophelia foi junto, estava quieta, em um silêncio fúnebre, como a calmaria que precede as tempestades de verão. Assim que chegamos Dulcineia desceu do veículo, Tebaldo ficou no carro. Desci para segurar Ophelia.

Dulcineia demorou muito para encontrar a mamadeira mágica. Nesse interstício fiquei com minha sobrinha no colo, na entrada do apartamento. Tebaldo tragava um franco cigarro de filtro branco, destes baratos que você compra em qualquer posto de gasolina.

– Tô afim de parar com o tabaco, bora junto?

– Não estou afim não, logo você vem pagar sermão, depois de passar 10 anos fumando um maço de cigarros de cowboy por dia – Respondeu meu irmão de pronto.

– Eu sei, mas ta na hora de você repensar esta questão de tubos de nicotina, não vejo muito sentido, não é para dar exemplo, é por questão de longevidade, saúde e blá blá blá.

– Ernesto deixa de conversinha, tô ligado, quando der eu paro, mas vê ai, parece que Ophelia ta caladinha… ué, agora estou notando você tem jeito para coisa, eu pessoalmente não sei, tenho medo de derrubar, se quebrar não tem como consertar.

Dulcineia chegou apressada, tentou pegar o bebê, mas a menina estava dormindo, qualquer movimento poderia acordá-la.

– Já que você está com ela nos braços, fica ai até chegarmos na casa da mamãe, pode deixar que eu dirijo seu carro.

– Pode ser, sem problemas – disse com um pé dentro do carro.

Dulcineia não era muito afeita a uma direção macia, logo, na saída do carro ela tocou o pneu traseiro no meio fio, e balançou tudo. Resultado, Ophelia acordou chorando horrores.

Lá estava eu com Ophelia nos braços, Dulcineia com o volante nas mãos e Tebaldo falando alguma coisa corriqueira sobre juízes e tribunais. O carro balançava bastante, principalmente pela quantidade de buracos e crateras semilunares, que havia em todo o percurso da volta.

Após alguns minutos de um silêncio choroso comecei a divagar, e me dei conta da realidade em que estava vivendo, pensei em tudo que nos unia e nos separava. O choro ecoava em todo o carro, o que fez o ponteiro do hodômetro disparar, na busca de uma chegada breve, onde finalmente seria usada a bendita mamadeira.

Como um estalo na cabeça me dei conta da realidade daliniana em que vivíamos. Afinal, crescemos… três adultos, com famílias, filhos, casa, contas a pagar. Todas estas coisas que nossos pais passaram, e que de maneira cíclica repetíamos. Parece que aquele tempo da infância ocorreu em outra época geológica. Acreditava que nunca iria crescer, hoje tudo parece uma sequência de lembranças boas e ruins.

Sempre pensei que seria Presidente, ou algo importante, que marcaria o mundo com minhas ideias e ideais. Os anos foram acumulando, estes sonhos ficaram no tempo. Por hoje, quero o mesmo que todos os demais humanos, ou seja: um bom livro, uma boa cerveja e uma boa família.

Era muito estranho, você acordar repentinamente do torpor da infância, e ver que a própria infância agora vem de você, de sua prole. Para mim foi um duro golpe peterpaniano, ver meu irmão já crescido, minha irmã casada, e eu com minha sobrinha no meu colo aos berros de fome, ainda mais com minha filha por nascer em questão de meses.

Por vezes sinto vontade de cair nos braços de Morfeu, ou que Sandman jogasse as areias do sono em meus olhos, assim poderia voltar ao seu reino dos sonhos. Voltar, quem sabe, a correr descalço pelas vielas de paralelepípedo, de uma pequena cidade. Voltar a andar de bicicleta sem as mãos. Ou apenas tocar a campainha de um portão qualquer e sair correndo.

Logo notei que não era somente Ophelia que chorava, pois, eu já tinha derramado um punhado de lagrimas nas brancas maças do rosto dela. Lá estávamos, duas gerações de uma mesma família, chorando por motivos diferentes, mas vertendo lágrimas.

Não sei se notaram, pois, estava muito escuro na parte de trás do carro. Ainda mais que a conversa de meus irmãos tampavam meus contidos soluços. Fiquei pensado que acordaria em algum momento do tempo e espaço, ancião e doente com meu neto no colo, e quem sabe chorando calado de novo.

Contive-me, estávamos chegando em casa, Opheilia já não chorava mais, aparentemente havia gostado de meu colo. Tebaldo sorriu para mim, não sei por qual motivo, mais sorriu, era tão pequeno no passado que eu sempre apanhava no colégio por ele, e agora era tão grande, não digo fisicamente, que não cabia dentro daquele pequeno carro popular.

Muitas coisas tinham ocorrido para uma curta viagem de carro. Ophelia não estava mais em meu colo, meus irmãos voltaram para suas vidas. Agora fica registrado em minha mente o dia em que éramos três novamente

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